terça-feira, 2 de julho de 2019

Ser o inimigo

A pesquisa, as leituras e as reflexões que tenho vindo a levar a cabo sobre o "mental load" das mulheres e aquilo a que chamei a engenharia doméstica e familiar levaram-me a realizar que nas questões de género estamos, ainda, à superfície da água, existindo um enorme e profundo oceano por explorar. Tentamos, colectivamente, abordar e tratar assuntos urgentes como a violência sobre as mulheres, as desigualdades salariais e tantas outras desigualdades cívicas que permanecem. A luta das mulheres está na rua e estará, há muito por fazer. E eu lá estarei. 

Mas existe outra luta, talvez a mais importante de todas, que a maioria de nós recusa. Esta luta é pessoal e intransmissível, é uma luta interior. Carregamos, todos, dentro de nós, os frutos da sociedade patriarcal, sementes germinadas há séculos e que se misturam perigosamente com aquilo que achamos que somos. Deixei de conseguir afirmar que sou uma mulher livre porque percebi que ainda não sou. 

Ao explorar o terreno pantanoso que é a nossa mente, percebemos como é difícil distinguir o que é nosso, daquilo que nos foi lá colocado. Sobretudo, torna-se impossível continuarmos presunçosamente a considerar que somos muito modernos e resolvidos. Eu, descobri em mim muito da mulher submissa que achei nunca ter encarnado e que sempre repudiei. Descobri em mim o machismo como uma espécie grilheta transparente que me trava sempre que o atrevimento de querer ser livre desperta. Descobri preconceitos, pequenos nadas, quase imperceptíveis, mas que me têm impedido de progredir sem que eu percebesse como ou porquê. 

A minha mulher selvagem está ainda aprisionada, mas agora um pouco mais consciente do que a limita. Este trabalho interno é essencial, e todos os que têm o privilégio de viver uma vida acima do nível da sobrevivência, deviam propor-se a fazê-lo, de forma honesta e humilde. De outra forma, a luta na rua não terá fim, porque continuaremos a ser o inimigo sem sequer percebermos... inconscientemente.





quarta-feira, 8 de maio de 2019

A Engenharia

Pouco tempo depois do nascimento do meu quarto filho, li pela primeira vez o conceito de "mental load", através dos cartoons da artista francesa Emma. Fiquei colada ao chão. Pela primeira vez, estava ali tudo o que eu nunca consegui explicar, traduzir em palavras. Durante anos, atribui o cansaço mental que ia acumulando ao stress no trabalho, até porque lá em casa as tarefas sempre foram partilhadas (embora eu sempre sentisse que de alguma forma tinha mais responsabilidades). 

Rapidamente se foram instalando questões que me foram ajudando a perceber porque estive tanto tempo sem entender o que se passava comigo. Eu própria desvalorizei, durante muitos anos, as tarefas domésticas. Via-as como uma sequência mecânica, desinteressante, monótona. Uma herança enfadonha que dispensaria de bom grado. Há medida que a família foi crescendo, as questões domésticas foram-se tornando mais e mais pesadas, e foi aí, ao desvalorizá-las que me desvalorizei, dando continuidade a este processo secular de auto desvalorização feminino. A grande armadilha.

Gerir uma casa, cuidar de uma família é uma Engenharia. Talvez a mais complexa de todas. A NASA ao pé disto é uma brincadeira. As desvalorizadas "domésticas" são na verdade engenheiras que planeiam, gerem e avaliam constantemente, dezenas de acções diárias que estão em constante mudança, reformulação, sujeitas a muitas influências exteriores, todas essas também observadas e registadas para que exista sempre um movimento de progressiva melhoria. Não é sequer uma engenharia mecânica, como pensei durante muito tempo. A realização de uma tarefa é resultado de um pensamento multidisciplinar, onde o amor e o desejo de ver cada membro da família feliz se mistura com a necessidade de gerir um orçamento e de ter a roupa lavada a tempo antes que chova. E basta que um sorriso não aconteça, ou que comece a chover mais cedo, para que tudo tenha que ser revisto, reequacionado. É uma engenharia orgânica, onde o amor prevalece mas na qual é preciso ter em conta muito outros factores. 

Pois eu caí na armadilha mas estou a sair dela. 

Engenharia Doméstica e Familiar, o trabalho mais difícil e complexo do mundo, levado a cabo há séculos, salvo excepções, por nós, mulheres. Saímos à conquista do mundo público que não era nosso, fomos ganhando e perdendo batalhas mas caímos sistematicamente nas mesmas armadilhas. Desvalorizar o "trabalho doméstico" é uma delas. Sim, era preciso sair. Sair não porque o que fazíamos era menor, pouco importante mas porque queríamos a liberdade de escolher o que ser e o que fazer. 

Então o que acontece se a nossa liberdade nos leva a uma casa cheia de gente para cuidar? O mundo atira-nos logo em cara que somos "menores", que se ali estamos é porque não tivemos a força, a inteligência, a vontade de estar noutro lado, lá fora, na "luta". E nós, interiorizamos todo este lixo pseudo feminista que na verdade é apenas a voz patriarcal a repetir, por outras palavras, as sentenças onde nos mantém presas há séculos. 

Ou seja, temos por aí génios da Engenharia a encherem-se de anti-depressivos porque acham que a sua vida é desinteressante e fútil. Continuamos sem ganhar os homens para a verdadeira partilha de tarefas e cuidados porque também eles compraram a mesma ideia que nós e julgam que a Engenharia Doméstica e Familiar é uma sequência mecânica de tarefas. Daí o nosso "mental load". Porque normalmente, o planeamento, a gestão e a avaliação ficam connosco. Temos ajudantes na execução, mas toda complexidade fica em nós. Juntando a isto o trabalho remunerado e a loucura quotidiana que vivemos, digam lá como é possível manter a sanidade e não cair num cansaço estrutural?

Eu estou tentar a sair desta armadilha e há muito para pensar, rever, reestruturar. Vens?










terça-feira, 13 de março de 2018

O milagre dos milagres

Desta vez não queria epidural. Tudo o mais natural possível. Até conseguimos forma da hipnoterapeuta estar comigo na sala de partos. Ia ser mais tranquilo, afinal já passámos por isto três vezes, será com certeza mais fácil. As sessões de hipnoterapia partilhadas com o pai no caso de ser necessária a sua intervenção. Tudo me dava uma imensa confiança e segurança. Era desta vez que ia ter o parto que imaginei. O meu quarto filho viria ao mundo natural e tranquilamente, sem drogas nem ventosas e eu ia viver aquele processo em absoluta concentração, sem químicos, medos ou crises de fé. Onze meses depois penso como fui ingénua. 

Com 42 anos e diabetes gestacionais, ganhei o carimbo de gravidez de risco e a sentença médica que o bebé não podia ficar nem mais um dia dentro de mim após as 40 semanas. Tal como todos os meus bebés, também este parecia não ter pressa alguma de vir cá para fora. Os dias passavam e os sinais de que o parto se aproximava iam surgindo, mas muito lentamente, como sempre acontece comigo. No dia combinado para ir ter com a médica à maternidade estava animada, porque sentia mesmo que o trabalho de parto já se tinha iniciado. 

"Sim, está tudo a andar muito bem. Isto com um pouco de oxitocina no soro vai ser um instante!". Quando ouvi "oxitocina no soro" devo ter feito uma expressão de desconfiança que a médica captou, e por isso atalhou, "a não ser que queira ir para casa. No seu caso não aconselho mas você é que sabe." Era este o momento. A maternidade estava cheia naquele dia, a médica percebeu que o parto estava perto e deu-me a janela de oportunidade que eu precisava para cumprir o nosso plano. Com certeza voltaria 24 ou 48 horas depois, já em trabalho de parto avançado e seria tudo como imaginámos. Mas... não fui capaz. Cedi ao cansaço, ao peso já quase insuportável, às dores de pernas e de costas, cedi à enorme vontade de ter o meu bebé nos meus braços, ao facto de já estar ali com a mala, com a bata vestida, tudo pronto. Comecei logo a justificar mentalmente a minha decisão, "um pouco de oxitocina no soro não é nada de mais, isto já está a acontecer, nem vou dar por isso:" Esqueci tudo o que sabia e que já tinha visto nos partos induzidos. "É só um pouco, não há-de ser nada." Olhei para o meu marido, interrogando-o com o olhar. "Fazemos como quiseres, como sentires", foi a resposta. "Então ficamos".

A partir do momento em que cedi, o conflito interno instalou-se. E uma vez instalado, tirou-me a calma e o foco. Os químicos no soro passavam para o meu corpo que parecia claramente estar a rejeitar a minha decisão. Vomitei muito, fiquei numa espécie de náusea profunda que não desaparecia. A noite caía e nessa altura fomos informados que, como eu ainda estava na sala de indução, o meu marido não podia ficar comigo a partir das 20h. Só voltaríamos a estar juntos quando eu passasse para o bloco de partos. O mesmo era válido para a terapeuta. Sem drama, está tudo bem, ele assim passa em casa para ver a prole e depois volta, temos tempo. Assim que o Pedro saiu as águas rebentaram e a partir desse momento as contracções que ainda mal sentia tornaram-se muito fortes. Na sala de indução estava eu e uma miúda que devia ter uns 18 ou 19 anos. Achei que o bebé ia nascer, sentia a pressão da cabeça dele e as contracções eram cada vez mais intensas e com poucos minutos de intervalo. Chamei a enfermeira, enquanto rastejava pela cama à procura de uma posição qualquer que me desse algum alívio. Olhei para o lado e vi os olhos de pânico da minha "colega". Disse-lhe, "não tenhas medo, não é sempre assim". Ia continuar mas já não consegui dizer mais nada. Finalmente a enfermeira apareceu. "Ai que a cabeça dele está mesmo aqui mas você não tem dilatação de jeito, só 4 dedos. Já está com vontade de fazer força não é? Pois, mas não pode mesmo, senão temos um problema sério. Vai ter aguentar." Mal sabia eu que essa frase seria repetida vezes sem conta nessa noite de Abril. 

Em vão tentei concentrar-me e usar as ferramentas que a hipnoterapia me tinha dado. Para além das dores, a voz que gritava dentro da minha cabeça "foste fraca, estragaste tudo!" era ensurdecedora e paralisante. A miúda deitada na cama ao lado, imóvel, muda. O tempo parecia ter parado e só existia dor e desespero. Nunca me senti tão só. A enfermeira aparecia de quando em vez apenas para me dizer que tinha que aguentar, que o bloco estava cheio, que eu ainda não tinha dilatação suficiente. "Tem que aguentar". O meu marido, a terapeuta e o seu marido, amigos do peito, todos os 3 já na sala de espera e eu absolutamente só. Quando finalmente apareceram com uma cadeira de rodas para me levar para o bloco de partos, eu já estava derrotada. Assim que vi o meu Pedro e os nossos amigos desfiz-me em lágrimas. "Estraguei tudo...". 

Entrámos no bloco, o Pedro comigo, um alívio enorme por já não estar sozinha e o caos à nossa volta. A parteira chefe quando nos viu entrar gritou, "Outra? Eu já disse que não temos espaço!". Eu a torcer-me na cadeira com dores enquanto as enfermeiras discutiam sobre o meu destino naquela noite. O meu parto natural e tranquilo era nesta altura apenas uma miragem. Toda eu era medo e dor. 

Quando a parteira me veio examinar disse-me que tinha mesmo que me acalmar. O bebé estava muito descido, estava "mesmo ali à porta", mas a dilatação não passava dos quatro dedos. Disse-lhe que tinha mudado de ideias, que não aguentava mais aquelas dores, que queria epidural. Você está carregada de adrenalina e ela corta o efeito da oxitocina. Tem mesmo que se acalmar até porque para levar a epidural precisa de ter mais dilatação (na realidade, quer eu quer todas as outras mulheres naquele bloco, esperamos horas pela anestesista que estava numa cirurgia, com dilatação ou sem dilatação esperámos todas...). 

Custou-me muito verbalizar que afinal queria epidural, mais uma derrota, mas custou-me ainda mais perceber que não ia existir alívio tão cedo. Ainda estava a recuperar deste momento quando percebo que afinal não vão deixar entrar a terapeuta. Mais um balde de água fria. Era eu, o Pedro e aquelas dores insuportáveis.

É difícil descrever as horas que se seguiram. O meu descontrole, o esforço do Pedro para me fazer acalmar, para ganharmos juntos o controle da situação. Conta ele que a primeira hora foi gasta a fazer-me aguentar as contracções sem gritar. A parteira aparecia de vez em quando, "Então, o que é isso? Já passou por isto outras vezes, vamos lá acalmar!" "Tem que aguentar querida!". Foi falando também com o Pedro, disse-lhe que me enfiasse debaixo do duche, sentada na bola de pilates, que era sempre um grande alívio. Na verdade o único grande alívio era já não estar só, e ver no Pedro a segurança e o amor que precisava para aguentar aquele suplício. Sei que houve alturas em que achei que ia morrer, eu e o bebé, tive muito medo, mas aquela presença forte e amorosa foi a minha âncora. 

Lá para a uma da manhã (ou seja, após cinco horas de total agonia) apareceu a anestesista. Já nem liguei ao seu trato impessoal e à sua arrogância, só queria a porcaria da droga para ver se conseguia descansar um pouco e ganhar forças. Assim foi. Dormi uns 40 minutos, acordei com uma contracção muito forte e reconheci o momento, "Pedro, chama a parteira, o Benjamim vem aí!". E assim, em 40 minutos, a dilatação estava totalmente feita. O período de expulsão foi rápido, apenas dificultado pelos efeitos da epidural, tive que me concentrar bastante para perceber onde tinha que fazer força porque não sentia o meu corpo. A parteira foi excelente nesta fase, fizemos uma bela equipa os três. Pela primeira vez, e de comum acordo decidimos não fazer episiotomia, até porque, (depois de três partos em que fui cortada sem alguém sequer perguntar se queria) dizia a parteira "se tivesse que cortar nem saberia onde...".  

Fiz três vezes força a sério e o nosso Benjamim saiu para mundo! Tranquilo, perfeito, forte! Ficou em cima da minha barriga, ainda ligados até o cordão deixar de pulsar. Trepou por mim acima, procurou a mama e sem esforço algum, mamou até ficar satisfeito. Toda aquela alegria mas dentro de mim permanecia a sensação de ter falhado, mesmo com o Pedro a dizer "Falhaste?! Estás louca?! Atravessaste todas as dificuldades e trouxeste o teu filho ao mundo. Hás-de-me explicar onde está a falha!". Ele tinha razão e hoje sei disso. Mas levei alguns meses a recuperar do que eu achava ser a minha fraqueza. 

Ao escrever este texto, tornou-se ainda mais claro que, com apenas algumas alterações de postura e protocolo na maternidade, o parto do meu quarto filho teria sido totalmente diferente, para melhor. Sofri desnecessariamente, porque a ciência "é espectacular" mas tudo o que a ciência teve para me oferecer durante cinco horas de agonia foi um "vai ter que aguentar!" Por isso logo no início do texto disse que fui ingénua. Fui ingénua porque quis casar dois mundos que ainda não cruzam, salvo raras excepções. Para mim, tornou-se essencial defender a luta pela humanização dos partos em contexto hospitalar, a defesa dos partos em casa, na água, onde as mulheres quiserem! Os médicos, que na sua maioria defende a sua presença nos partos como absolutamente necessária, têm, mesmo nas maternidades, a utilidade de uma ambulância no backstage de um concerto, só entram em acção se algo correr muito mal. Então, a luta travada é pelo poder e não pelo bem estar das mulheres, dos seus bebés e das respectivas famílias. Isto é triste e é pequenino. Já parir, é o milagre dos milagres e somos nós, mulheres, que o fazemos acontecer.
E nunca deixem que vos digam o contrário.



















segunda-feira, 5 de março de 2018

O que não escrevi

Há mais de um ano que não escrevia. Nem papel, nem teclado, nada. No entanto, durante todo este ano, produzi mais textos na minha cabeça do que em qualquer outro período da minha vida. Hoje são memórias vagas de um certo estado de espírito, uma ou outra palavra, no máximo frases soltas. O tempo como o vivemos é tramado e deixou-me numa espécie de ansiedade, dividida entre o sentir que nunca antes tinha tido tanto para dizer/escrever e a impossibilidade de encontrar tempo e espaço para o fazer. 

Agora que o tempo já se deixa agarrar volto à escrita. O que não escrevi anda perdido em mim, pontas soltas que vou puxando daqui e dali e que se misturam num novelo confuso que vou desenleando aos poucos, que aqui já ninguém tem pressa.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

"Gravidez não é doença"

"Gravidez não é doença", ouvimos vezes e vezes sem conta. Pois não, não é. O problema é que esta frase faz parte de uma mentalidade que banaliza a gravidez e nos afasta do seu aspecto sagrado, como se o milagre de gerar vida fosse apenas um estado clínico específico, que, não sendo doença, não exige mais que uma observação médica regular. 

Quando e porquê nos esquecemos de nos maravilhar com este milagre? Até o facto da ciência nos permitir entender muito sobre este processo de gerar vida nos deveria maravilhar ainda mais, mas não.  Para a maioria das mulheres a gravidez é vivida enquanto se mantêm todas as rotinas diárias, deixando pouco ou nenhum espaço para sentir e pensar a gravidez e o pequeno ser que cresce dentro de nós. Mais uma vez nos é exigida produtividade e constância, até perante o mais importante processo das nossas vidas, ao qual cedemos a nossa força vital. Uma gravidez plena e consciente implica um constante remar contra a maré porque tudo à nossa volta nos afasta e nos distrai do essencial. 

Este processo de banalização da gravidez é mais uma face do patriarcado e da sua constante desvalorização do feminino, mas não me parece que seja apenas isso. Na verdade, é um processo de enfraquecimento humano, uma retirada de poder a homens e mulheres. A força e o poder são colocadas na tecnologia, na artificialidade do produzido/consumido, fazendo-nos esquecer a maravilha tecnológica que são os nossos corpos (grata Lili) e a centelha divina que habita em cada um de nós. 

Assim, parece-me essencial remar contra a maré, e dar à minha gravidez a importância e a deferência que merece, custe o que custar.

Viver a gestação de um novo ser humano rendidos à maravilha e ao milagre é uma forma de luta e de resistência. Por toda a humanidade.



Fotografia Rute Violante

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Super poderes

Estou muito feliz. Descobri que tenho super poderes. Consigo tornar-me completamente invisível e a minha voz sai numa frequência inaudível a humanos, só os animais me ouvem. Fantástico não é? 
Fiquei tão surpreendida que resolvi perguntar ao Universo qual o motivo para esta transformação. Teria sido eu escolhida para um destino heróico, combatendo as forças do mal? Seria necessário adoptar uma identidade secreta, escolher um fatinho como o da Catwoman? 
A resposta foi surpreendente. Parece que afinal os meus super poderes decorrem apenas do facto de ser mulher e mãe. Guardei o fato e as ideias heróicas na gaveta onde dorme o meu Leão domesticado e fui fazer o jantar. 

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Mimi

Tenho uma gata preta chamada Mimi. É a mais velha dos cinco gatos que vivem connosco. A Mimi tem um comportamento que me perturba e me fascina, a tal ponto que tenho gasto muitas horas a tentar, mais do que entendê-lo, perceber porque é que o comportamento dela mexe tanto comigo. 

Assim que o tempo aquece a Mimi vai progressivamente dando passeios mais longos até que, lá para o pino do Verão, pode ficar fora de casa vários dias, aparecendo de vez em quando apenas para comer. Uma vez que a fome é saciada, sai rapidamente pelo quintal e desaparece. Estas ausências têm consequências. Os outros gatos lá de casa passam a ocupar os lugares "exclusivos" da matriarca Mimi e, parece-me a mim, reorganizam-se como grupo, estabelecendo novas hierarquias e regras. Ao mesmo tempo que isto acontece, a Mimi vai-se tornando cada vez mais "uma estranha". Entra em casa a medo, perdendo toda a sua pose de líder, chegando por vezes a ser atacada pelos outros que parecem deixar de a reconhecer. Mesmo connosco humanos, a Mimi altera totalmente o seu comportamento, não deixando sequer que lhe toquemos.

Terminado o Verão e à medida que a temperatura vai descendo, a Mimi vai aparecendo com mais frequência. Começa por vir comer todos os dias ao final do dia, entrando e saindo sorrateiramente. Passado algum tempo surge também pela manhã, rosnando aos outros gatos, iniciando assim a sua retoma do poder matriarcal. Assim que o frio aperta, as vindas a casa deixam de ser só para comer e passam a incluir sestas debaixo da mesa da cozinha. Nesta fase, os outros gatos já não tentam atacá-la, passam ao longe afastando-se assim que ela começa a rosnar. Mais uns dias e a Mimi começa a aventurar-se por outras divisões da casa, ainda fugidia mas já permitindo festas. Quando nós humanos "abusamos" nas festas ou tentamos pegar-lhe ao colo, volta a fugir. Mas lentamente, dia após dia, a Mimi volta a ser senhora da casa, a deitar-se ao meu lado no sofá perto da lareira, a dormir connosco aos pés da cama, a pedir festas com o seu miar de passarinho. Quando a Primavera regressa e o calor se instala, todo este ciclo recomeça...

A liberdade em pleno. É isto que a Mimi e o seu ciclo me mostram. A Mimi segue os seus instintos e por eles, abdica de tudo, num total desapego ao conforto, ao poder e à família de que de faz parte. Quando regressa, tudo está por conquistar e ela, pacientemente, passo a passo, reconquista cada pedaço da sua vida doméstica, apenas para voltar a abdicar de tudo quando a Natureza a chama. 

Seria eu capaz de abdicar de tudo o que conquistei para seguir a voz da minha liberdade? Teria eu a humildade de regressar e a partir do zero voltar a construir o meu lugar? A Mimi deixa-me a pensar na quantidade de vezes que me travo por receio de perder, sem me aperceber que o essencial nunca fica perdido e que tudo o resto pode ser reconquistado, com humildade e paciência. A Mimi representa a liberdade, a humildade e o desapego que chocam de frente com o meu medo, o meu orgulho e o meu apego. É este o nosso espelho, e por isso eu receio tanto por ela, porque na realidade receio por mim, por tudo o que ainda me trava e me impede de ser plenamente livre.